março 24, 2015

VONTADE, DESEJO E LIBERDADE

Jo. 8: 32 a 36 - "... e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. Responderam-lhe: somos descendentes de Abraão, e nunca fomos escravos de ninguém; como dizes tu: sereis livres? Replicou-lhes Jesus: em verdade, em verdade vos digo que todo aquele que comete pecado é escravo do pecado. Ora, o escravo não fica para sempre na casa; o filho fica para sempre. Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres."
São inerentes à natureza humana decaída a ilusão e a mentira. Isto se dá porque a condição de morte espiritual para Deus coloca o homem em aparteísmo. Trata-se de uma falsa autonomia a qual o leva a presumir que é livre em função do que faz ou deixa de fazer. Tal falsidade autômata trai os sentidos humanos, dando-lhes uma capacidade de construção de realidades paralelas em relação à verdade.
A vontade não pode ser confundida com o desejo, porque, enquanto o desejo é o que emerge da natureza humana sem a capacidade de controle por parte do agente desejante, a vontade é a razão a serviço daquilo que é o correto e possível de ser feito. A razão está a serviço da moral, enquanto a vontade está a serviço da ânsia da vida por si mesma. A moral é o que uma pessoa faz ou não faz, independentemente das circunstâncias instintivas ou externas. Por exemplo, ainda que alguém pudesse ficar invisível não furtaria ou não mataria, porque furtar e matar não é moralmente correto. Ainda que alguém dispusesse de pleno poder sobre outros não forçaria as outras pessoas a lhe conceder algo reprovado pela moral. Ainda que uma pessoa não estivesse sob qualquer forma de censura alheia não adotaria uma postura obscena porque a sua moral não aceita como normal. Neste sentido a maior parte das pessoas não são pessoas morais, mas amorais e/ou imorais, visto que agem em função das circunstâncias e não de acordo com o que a razão indica como o correto a ser feito. 
A alegoria do "Anel de Giges" na obra "A República" de Platão permite extrair algum subsídio para os conceitos de moral e razão. Um pastor de ovelhas considerado um bom homem guiava o seu rebanho. Após uma tempestade e um terremoto, se deparou com um homem morto. Percebeu que o cadáver portava apenas um anel. O pastor tomou para si o anel, colocando-o no dedo seguiu ao seu labor rotineiro. Percebeu o pastor que, quando estava em um ambiente social em companhia de diversas pessoas e manipulava o engaste do anel para dentro estas não lhe percebiam. Era como se ele não estivesse presente no local. Concluiu, assim, o pastor que o anel lhe dava a invisibilidade. A partir do momento em que constatou este fato passou a usar da sua invisibilidade para trair, matar e usurpar o poder do rei. Ora, o fundamento moral é que um homem pode aparentar ser algo ou alguém apenas porque as circunstâncias não lhes são favoráveis. Exposto em seu erro ou fraqueza poderia tornar-se objeto de restrição da liberdade no sistema vigente. Poderia ser apanhado pela lei, julgado e condenado. Entretanto, quando livre de quaisquer possibilidades de juízo faz tudo o que os seus desejos impõem.
Enquanto o desejo é algo inerente à natureza instintiva e animal, a vontade é aquilo que a razão indica como o correto e justo. A razão é o que deve ser feito, independentemente dos desejos. A razão não depende do que o homem deseja para gratificar-se e ser feliz. A felicidade é a busca pelo prazer e o afastamento das dores e sofrimentos. Portanto, nem sempre quando alguém age para ser feliz age moralmente. O homem amoral é aquele que desconhece ou ignora os princípios da razão. O homem imoral é aquele que age em sentido oposto e conflitante com a razão, ainda que seja em nome da felicidade.
No texto que abre esta instância vê-se um embate entre os líderes religiosos e o Mestre Jesus, o Cristo. Ele propõe que, se o homem conhecer a verdade experimenta a verdadeira liberdade. A isto os religiosos negaram dizendo que não necessitavam da liberdade proposta, porque eram descendência de Abraão e nunca foram escravos. Primeiro, os tais religiosos reduziram a liberdade a uma questão puramente genealógica e étnica como um qualificativo. Segundo, negaram a própria história do seu povo que foi escravo por 430 anos no Egito e depois em outras épocas e lugares nas diásporas. O religioso que não experimentou o novo nascimento toma por referência apenas suposições idealizadas por uma moral determinada pela vontade natural e não pela verdade espiritual. A verdade libertadora proposta por Jesus, o Cristo não era uma concepção filosófico-religiosa. A verdade é uma pessoa, a saber, o próprio Cristo conforme Jo. 14:6 - "Respondeu-lhe Jesus: eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim." Jesus, o Cristo demonstra que, além de ser ele mesmo a verdade, também, é o caminho e a vida. As implicações desta verdade é que não há redenção libertadora fora de Cristo. Tal libertação se dá quando o homem decaído é incluído na morte d'Ele, e, consequentemente, em sua ressurreição. O processo de redenção consiste na inclusão e substituição do homem contaminado pela natureza pecaminosa na cruz. Este fato, que se apropria por fé, aniquila a culpa do pecado  que o torna morto espiritualmente para Deus. A maioria dos religiosos desconhece que há três naturezas de morte: a) a morte espiritual para Deus; b) a morte física ou biológica; c) a morte para o pecado.
Fica claro que, ainda que religioso e ético, o homem continua escravo da natureza pecaminosa. Portanto, não é livre nem espiritualmente, nem racionalmente e, muito menos, moralmente. Porque tanto o desejo, a vontade e a razão estão escravizados pela natureza decaída e absolutamente depravada. Assim, o escravizado necessita de um libertador que não é contaminado por tal natureza corrompida. Este foi o projeto de Deus para libertar verdadeiramente o homem da sua condição de pecador. Incluir o pecador na morte justificadora de um libertador absolutamente puro e justo. Após tal processo, o pecador retorna à vida justificado e liberto da culpa do pecado. Ao longo da sua vida será tratado e aperfeiçoado dos atos pecaminosos até a restauração final.
Sola Gratia!

março 22, 2015

ESTADO LAICO, IGREJA E TOLERÂNCIA

Mc. 2: 14 a 17 - "Quando ia passando, viu a Levi, filho de Alfeu, sentado na coletoria, e disse-lhe: segue-me. E ele, levantando-se, o seguiu. Ora, estando Jesus à mesa em casa de Levi, estavam também ali reclinados com ele e seus discípulos muitos publicanos e pecadores; pois eram em grande número e o seguiam. Vendo os escribas dos fariseus que comia com os publicanos e pecadores, perguntaram aos discípulos: por que ele come com os publicanos e pecadores? Jesus, porém, ouvindo isso, disse-lhes: não necessitam de médico os sãos, mas sim os enfermos; eu não vim chamar justos, mas pecadores."
O Estado é um ente político que se expressa por meio do território, do povo, do governo e do elevado nível de soberania. O Estado, como entendido hoje, existe a partir da concepção contratualista que, prevendo 'a guerra de todos contra todos', quando o homem vivia em 'estado de natureza', propôs um contrato social. O contrato social se define pelo homem abrindo mão do individualismo e liberdade em troca de garantias e proteções do Estado. Montesquieu deu um refinamento a mais na estrutura do Estado com a sua fórmula tripartite dos poderes do Estado: poder legislativo, o poder que faz as leis; poder executivo, o poder que executa o que as leis exigem e realiza a gestão da coisa pública; e o poder judiciário que zela pelo cumprimento e aplicação das leis. 
A Igreja no sentido do evangelho e da fé cristocêntrica é o conjunto de todos os regenerados pela experiência de novo nascimento em todos os tempos e lugares. Tal experiência se dá pela inclusão do pecador na morte e ressurreição de Cristo. A Igreja genuína se define como um corpo vivo formado de 'pedrinhas' edificadas sobre a Rocha Eterna que é Jesus, o Cristo o seu cabeça e o seu fundamento. Tal estrutura é definida por Jesus, o Cristo em Mt. 16:18 - "Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela." Nem Cristo, nem Deus jamais fundou qualquer religião ou sistema de crença institucionalizado. A Igreja não é identificada pelo exercício de uma religião exterior, ritualística e preceitual, mas pela graça mediante a fé na justificação única, perfeita, eficiente e eficaz da inclusão do pecador na morte de Cristo e na sua consequente ressurreição. Este processo de redenção aniquila a culpa do pecado e reconcilia o pecador a Deus.
O Estado laico não se define como um Estado formado por pessoas e instituições que se declaram ateias como presume a maioria das pessoas. O laicismo não é uma virtude e, portanto, não se aplica a pessoas. Aplica-se tão somente a coisas que não possuem poder de decisão moral. A laicidade é um princípio político, referindo-se à organização da sociedade e não a pessoas. O laicismo consiste em uma condição na qual o Estado não adota regras religiosas, não patrocina a religião, e não institui qualquer forma de culto em sua estrutura oficial de poder e governo. 
A tolerância é uma virtude moral e se aplica, tão somente, a pessoas e jamais a coisas as quais não podem decidir moralmente. A tolerância só pode existir em alguém que possui o poder de ser tolerante ou não ser tolerante, pois do contrário, não haveria necessidade de tolerância. A tolerância pode ser por amor ou por força moral. Por amor ocorre quando alguém ama e, portanto, tolera ideias e comportamentos do outro; por força moral a tolerância ocorre quando alguém não ama, mas tolera a ideia ou o comportamento do outro ainda que não concorda com os tais, por uma questão moral. A tolerância, portanto, pressupõe discordância de posições ideológicas e comportamentos condenatórios, porém o tolerante não age contra o outro.
Jesus, o Cristo separou perfeitamente o Estado da Igreja na expressão "... dai a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus..." Tal ensino revela que o Estado desenvolve sua atividade de Estado e a Igreja a sua função de Igreja sem confundir-se um com o outro. O que é do Estado é a política, a economia e a administração da coisa pública. À Igreja cabe a adoração, o anúncio do evangelho para a justificação do pecador. Visa despertar os eleitos para a reconciliação do seu espírito corrompido com Deus, trata da purificação da alma e garante a ressurreição do corpo na restauração final. São dimensões de naturezas absolutamente diferentes e até mesmo opostas. Isto não quer dizer que, em nome de Deus, da Igreja ou de uma fé qualquer alguém deve entrar em rota de conflito com o Estado e suas instituições. Uma pessoa absolutamente crente submete-se às leis do Estado sem prejuízo da sua fé. Entretanto, quando o Estado invade os liames do campo espiritual o que crê não está obrigado a violar a sua fé conforme At. 5:29 - "Respondendo Pedro e os apóstolos, disseram: importa antes obedecer a Deus que aos homens."  
O texto de abertura ensina com clareza uma questão de intolerância dos líderes religiosos e a tolerância de Jesus, o Cristo. Os religiosos questionavam o fato de Jesus comer com pecadores e publicanos. Jesus lhes ensina que a real e verdadeira tolerância não é evitar ou condenar aqueles que praticam atos e atitudes considerados em uma cultura como desaprovados. Sendo a missão redentiva de Jesus, o Cristo salvar ou redimir os injustos, não faria sentido ele pregar, ensinar e amar os que se consideram justos. Quem se vê como justo não necessita de justificação.
Solo Cristo!