domingo, março 2

A DOUTRINA DA ELEIÇÃO CONFORME AS ESCRITURAS I

No tocante as questões espirituais, não há doutrina que mais incomoda ao homem que a eleição e a predestinação. Ela é desassossegadora, precisamente, porque retira o brilho meritório e a possibilidade de autopromoção diante de Deus. O homem em sua contingência decaída, não tolera qualquer coisa ou outro ser que lhe restrinja o poder de decisão e de ação. Não suporta qualquer forma de submissão que lhe retire o foco e a centralidade de si mesmo. É por excelência um teomânico portador da "Síndrome de Ser Como Deus." Este processo é decorrente da natureza pecaminosa reinante e dominante no homem após a queda. Não é uma questão de escolha consciente ou inconsciente, até mesmo para o mais integro humano que vive ou já viveu sobre a Terra.
O gênero humano é essencialmente religioso, ainda que não pratique este ou aquele culto. O homem crê em muitas coisas, muitas forças, muitos mistérios, muitas divindades, muitos santos, ou mesmo crê que não crê em nada e, isto, não lhe retira também uma forma de crença.
Em uma definição simples e geral, pode-se dizer que religião é "um conjunto de crenças relacionadas com aquilo que a humanidade considera como sobrenatural, divino, sagrado e transcendental, bem como o conjunto de rituais e códigos morais que derivam dessas crenças." Quando o homem não pratica nenhuma religião convencional transforma suas ideologias em uma espécie de crença religiosa. Muitos procuram uma espécie de auto-religião, ou seja, crer em si mesmo.
Etimologicamente tem-se que a palavra religião provém do latim 'religio', entretanto as relações semânticas entre 'religio' e religião são basicamente incertas ou desconhecidas. No mundo latino, isto é, dominado pelo Império Romano, anterior ao surgimento do Cristianismo, 'religio' referia-se a um estilo de comportamento marcado pela rigidez e pela precisão comportamental. Era, portanto, uma espécie de código de moralidade. Assim, a filologia de 'religio' fica prejudicada por escassez de elementos semióticos de relação, já que a semiótica trata dos sistemas de significações dos signos e suas propriedades de convertibilidade recíproca entre os sistemas significantes que integram.
Vale a pena ressaltar, que, em nenhuma outra civilização existe qualquer termo equivalente a palavra religião. Esta palavra ficou restrita à cultura judaico-cristã ocidental, especialmente na Europa. Ao longo da história foram propostas várias etimologias para a origem do termo 'religio'. Cícero, na sua obra "De Natura Deorum", (45 a.C.) afirma que o termo se refere a 'relegere' ou 'reler', sendo característico das pessoas religiosas prestarem muita atenção a tudo o que se relacionava aos deuses, relendo as escrituras atinentes a cada sistema de crença. Esta proposta etimológica sublinha o carácter repetitivo do fenômeno religioso, bem como o aspecto intelectual do mesmo. Mais tarde, Lactâncio (séc. III e IV d.C.) rejeita a interpretação de Cícero e afirma que o termo vem de 'religare', isto é, religar, argumentando que a religião é um laço de piedade que serve para religar os seres humanos a Deus. Assim, vê-se que religião é uma propositura absolutamente humana dirigida a seres supostamente espirituais.
No livro "A Cidade de Deus" Agostinho de Hipona (séc. IV d.C.) afirma que 'religio' deriva de 'religere', no sentido de "reeleger". Através da religião, a humanidade reelegia a Deus, do qual se tinha separado em decorrência do pecado. Mais tarde, na obra "De Vera Religione" Agostinho retoma a interpretação de Lactâncio, que via em 'religio' uma relação com "religar".
Macróbio (séc. V d.C.) considera que 'religio' deriva de 'relinquere', ou seja, é algo que nos foi deixado ou relegado pelos antepassados.
Independente da origem, o termo é adotado para designar qualquer "conjunto de crenças e valores que compõem a fé de determinada pessoa ou conjunto de pessoas. Cada religião inspira certas normas e motiva certas práticas."
Ao menos um aspecto fica claro: a religião é uma proposta que parte sempre do homem em relação a Deus. Consequentemente, não é uma criação ou um decreto eterno d'Ele dado ou outorgado ao homem. A religião é um fenômeno puramente humano e não divino.
Considerando que religião é uma ação do homem na tentativa de se religar a Deus por suas próprias expensas, conclui-se que é uma atividade que parte de um ser contaminado pela natureza pecaminosa e se destina a um Ser puro, santo e justo. Logo, não se pode tomar a atividade religiosa do homem como base da verdade, visto que a verdade não é meramente uma concepção, mas uma realidade vivencial e pessoal que se origina em Deus.
Por estas razões todas que vêem de ser retratadas, o homem não recebe a doutrina da eleição, visto ser esta independente das suas ações e concepções. Parte da soberania de Deus, a quem Ele decidiu antes dos tempos eternos, antes da fundação do próprio mundo. Por isso, no livro de Jó, Deus indaga ao seu interlocutor: "onde você estava quando eu fiz o mundo?"
Sola Gratia!!!

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